terça-feira, 27 de março de 2018

Manto e Terra - são só interjeições pentecostais ou tem mais angú nesse caroço?

Neste texto, uma reflexão sobre as expressões “manto” e “terra” que vêm sendo utilizada entre os pentecostais. O que elas significam? Porque são utilizadas? Para que servem? Superado o desconcerto inicial, passei a indagar não pelo sentido ou a serventia destes termos, mas pela coragem de quem os toma, pois age como se eles representassem ou servissem de algo. Os repetem como um conselho enigmático onde o manto é o mistério e a terra o seu destinatário.

Percorrendo a Bíblia, não foi preciso caminhar muito para encontrar o manto. Ele esteve sobre Elias e depois sobre Eliseu; antes disso, em Moisés; bem depois, sobre Isaías ou Daniel.O manto. A veste do profeta. A identidade do mensageiro. Os arautos bíblicos tinham um. Também o tinham os quatrocentos mentirosos que Acabe consultou para saber se deveria lutar contra os sírios na retomada de Ramote-Gileade (2 Crônicas 18). Eles o tinham e usavam-no, claro, a favor de quem os vestia, de quem os mantinha, de quem lhes dava provisão por previsões. Os quatrocentos aduladores de Acabe, vestindo quatrocentos mantos, entregaram quatrocentas mensagens falsas e derrubariam seu rei quatrocentas vezes. Mas se tinham o manto, se envergavam a cobertura, se andavam como profetas, que importa se mentiam?

Os quatrocentos videntes de Acabe eram parlapatões de farda, enganadores ornados, gabolas condecorados. Apesar de vestidos, estavam nus. Mesmo de túnica expunham suas vergonhas, o embuste de não serem o que diziam. Hoje, eles gritariam “manto!”, como quem afirma credenciais para compensar o crédito que lhe falta. Hoje, os quatrocentos charlatões de Acabe não fariam um culto, mas um espetáculo cuja figura principal seria o próprio rei, que alvo de suas loas cairia abatido pelos falhanços. Mas eles tinham o manto, e isso bastava à sua tola audiência.

Porque dizem “manto!” os profetas modernos? Porque querem ter um e não tem. Porque lhes interessa afirmar o que não são. Porque desejam o que não se pode comprar. Na profusão de modismos pentecostais, qualquer neologismo conta para afirmar espiritualidade. A bem da verdade, não deveríamos estranhar isso, pois a confusão semântica provocada pelos profetinhas é resultado da balburdia espiritual que há muito desencaminhou a profecia de sua vocação bíblica e original, exortar, edificar e corrigir a igreja. Os mantos de agora são como as capas do clero particular de Acabe: servem apenas para exaltar, elogiar e vingar os que têm comichão nos ouvidos.

Isso é sobre o manto. Mas, e sobre a terra? “Terra!” é um vocativo. É a maneira como os homens togados tratam os homens comuns, “Terra!”. Porque somos pó, e ao pó voltaremos. Simples assim. Em Ramote-Gileade, a terra era Acabe. Era o comum, o rei mortal, joguete nas mãos dos homens de manto. Dono de um ego carente, ele dependia das falsas profecias como a terra seca reclama água. Isso o tornou protagonista de um dos maiores pactos de mediocridade espiritual de que se tem notícia: o rei de Israel só consultava os seus adivinhos porque eles o agradavam – lhe parecia bom voltar ao pó iludido quanto à vida, pois a sua morte, já sabia, seria total desilusão. Num arrombo de sinceridade constrangedora, Acabe desintegrou qualquer virtude que ainda tivesse: “Há outro profeta, mas não gosto dele. Ele nunca me fala coisas boas!”. Terra? Não. Poeira.

Quando Deus disse que o ciclo da vida começa e finda no pó (Gênesis 3), ficou provada a temporalidade do existir. No entanto, a vaidade fez do transitório insignificância, pois os humanos desejam mais do que merecem, querem mais do que precisam. Assim, no afã de ter e juntar, os homens “amontoarão” (2 Timóteo 2.4) enganadores que os façam sentir maiores do que são: “Falsos profetas, podem nos chamar de ‘terra’, mas prometam-nos a vingança, as exaltações e os aplausos. Somos ‘terra’, mas queremos o mundo!”. Assim se comportava Acabe, assim se porta nossa geração. Ele era pó, mas seus falsos profetas o faziam sentir montanha. Poeira que era, ainda seria varrido para baixo do tapete da história.

Preocupados demais com a subcultura pentecostal, empenhados em cristalizar o jeito crente de falar e expressar a fé, esquecemos que acima de nossas expressões particulares e seus sentidos ocultos está a verdade revelada por Deus. Esta, sim, um manto que desce dos céus e nos cobre com o entendimento. Dedicados a extasiar os térreos, os profetas dos mantos roubados de um varal qualquer fingem superioridade espiritual, um nirvana evangélico, um êxtase sem igual. E a terra? Ela se deixa impressionar e encher pelo esvoaçar das estolas.

Num lampejo de tardia sobriedade, o rei Josafá, que se meteu a acompanhar Acabe na campanha indevida contra os sírios, pede para falar com um profeta de Deus, um que diga a verdade sem medo de perder o manto, um comprometido com o céu e não com a terra. É neste ponto da história que aparece Micaías, cuja participação é mais relevante por descortinar os bastidores da falsa profecia que por desmentir os enganadores particulares do monarca. Micaías conta ter visto o Senhor desejoso por derrubar Acabe, para o que autoriza um espírito mentiroso falar na boca dos falsos profetas. O frenesi dos quatrocentos embusteiros, então, era coisa pior que meninice, era possessão, era atuação de um espírito enganador enviado por Deus.

Que quer isso dizer? Que todos os que empolgados profetas gritando “Manto!” e “Terra!” estão sob efeito da mentira? Certamente não todos, mas, sem dúvida, muitos, pois a verdadeira profecia não existe para inflar os egos e exultar os homens, ela age para edificar a Igreja e construir-lhe os muros. Entre o manto e a terra, ouço palavras que não servem ao corpo de Cristo, não são úteis ao rebanho, não acrescentam ao povo. Entre o manto e a terra, ouço promessas de vinganças e vendetas. Entre o manto e a terra, Deus mata e enterra. Entre o manto e terra, se mata ou se morre. Entre o manto e a terra, não há vida nem misericórdia. Entre o manto e a terra, vejo Deus reduzido a um jagunço dos crentes, pronto a eliminar desafetos. Foi o que Acabe pediu. Foi o que lhe deram os quatrocentos enganadores de manto.

Gunar Berg de Andrade

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